A revista Sábado foi para a rua fazer um vídeo com aquilo que a revista  Sábado considera serem perguntas sobre cultura geral. E escolheu jovens  universitários, para que no dia seguinte o país pudesse ficar chocado e  fazer uso dos chavões do costume, que estavam a ganhar mofo nas gavetas  com a conversa da crise: que tanta educação e depois não sabem nada, que  é só gastar dinheiro, que antes isto não era assim, que escândalo, que  burros, andamos nós a gastar dinheiro nisto.
Não quero gastar muito latim nisto, porque não merece mesmo, mas ainda assim quero dizer umas coisinhas:
1.  Já vi vídeos deste tipo feitos nos mais diferentes países, com os mais  variados níveis educacionais. A minha experiência diz que, em qualquer  país, é fácil encontrar pessoas pouco cultas, ainda mais se estivermos  dispostos a escolhê-las pelo aspeto e ainda muito mais se o vídeo não  tiver de ser representativo da amostra. Em bastando escolher os mais  "engraçados", aquilo faz-se em duas ou três horas. À atividade de se  mostrar partes da realidade selecionadas com o propósito de demonstrar  uma teoria anteriormente postulada pelo autor não se dá o nome de  jornalismo - convencionou-se o uso do termo "propaganda".
2.  Portugal é um país em que o Exame Nacional de Sociologia é um teste de  cruzinhas. Isto são só exames, não são as aulas, é verdade, mas se tudo o  que o Estado me quer ensinar sobre Sociologia dá para um teste de  cruzinhas, é difícil espantarmo-nos se dois anos depois eu confundir o  Max Weber com a Max Mara e o Karl Marx com os Marx Brothers.
O mesmo  acontece com a arte, que só aparece na retaguarda nas aulas de História.  De que me serve saber quem pintou a Capela Sistina se não sei o que  terá ela de extraordinário? Se a apreciação da arte não vinha num teste  de cruzinhas, agora querem o quê?
3. Outro dia, o Ministro da Educação disse que estava na altura de nos concentrarmos nas disciplinas essenciais.
4.  Uma das coisas mais extraordinárias dos últimos anos em Portugal é o  facto de terem chegado às universidades, com enorme esforços dos pais,  jovens que foram os primeiros da sua família a acabar o secundário,  jovens que foram os primeiros da sua terra a frequentar uma  universidade. Curiosamente, as conversas ao jantar lá em casa não  versavam sobre a Capela Sistina, os diários de referência não eram uma  companhia habitual e as tardes passadas no Centro Cultural de Belém não  eram o programa de domingo mais frequente.
5.  Comparados com a anterior geração de universitários, estes jovens sabem  menos - é perfeitamente natural. As elites continuam lá, não se  apoquentem que não foram a lado nenhum. Mas já não são a maioria.
6.  Outro dia, questionado sobre os direitos dos trabalhadores na  Assembleia da República, Álvaro Santos Pereira respondeu "Eu sei o que  se passou em Cuba e na União Soviética". Passou no teste de cruzinhas,  decerto, mas com debate político deste nível, alguém se espanta com os  jovens que dizem que não gostam de política? É isto a política, estes  debates superficiais recheados de cretinices e indiretas? Então eu  também não gosto: deixa-me mal disposta e insulta-me a inteligência.
7. Repito-me, mas raramente uma única geração foi tão ridicularizada de cada vez que tentou tomar uma posição política. Que ainda existam entre eles jovens que se interessem por política, é um verdadeiro prodígio.
8.  Também outro dia, alguém veio sugerir menos informação no serviço  público de televisão. Trata-se de alguém que frisou que uma coisa "não  tinha nada haver" com outra e que tinha grandes dificuldades em perceber  a distinção entre um órgão de comunicação ser do Estado ou "do Governo"  (tenho de encontrar estas declarações).
9.  As perguntas escolhidas são muito curiosas e muito típicas de um país  onde é considerado gravíssimo não ter lido o último Houellebecq  mas  perfeitamente normal desconhecer o conteúdo da(s) teoria(s) da  relatividade, a localização das placas tectónicas ou falar do "símbolo químico da água". Somos muito humanistas, é o que é.
10.  Eu também tive de ir ver quem tinha sido O Padrinho. Vi o filme, mas  não me lembrava. Vou ali sentar-me no cantinho a pensar porque é que  isso é grave.
Honestamente, sem fazer um grande esforço, eu não tenho vergonha do país que vi naquele vídeo. Não me preocupam as comparações com as gerações anteriores  - basta-me ver a evolução da taxa de analfabetismo para dizer sem medo  que há 20 anos o conhecimento dos portugueses sobre a Capela Sistina não  andaria muito melhor. Tenho muito orgulho nos saltos que a Educação em  Portugal deu nos últimos anos, especialmente na sua democratização e no  seu alargamento. Tenho vergonha de quem se aproveita das fraquezas de  uns quantos para fazer pouco de uma geração inteira. Estou cansada do discurso do ódio.  Preocupa-me muito que o discurso na Assembleia da República não seja  fundamentalmente distinto do que o vídeo mostra. E repugna-me que uma  organização jornalística produza um vídeo tão demagógico. Mas não tenho  vergonha deste país.
Update: Entretanto  fui ler o texto que vinha com o vídeo, que ultrapassa o vídeo no ódio,  na arrogância, na sobranceria e na falta de nível. Fiquei a saber de  onde vinha a agressividade do jornalista, é que ele não tinha  frequentado um curso universitário. Ou, se tinha, não foi jornalismo. Eu  tive jornalismo na faculdade e nenhum dos meus professores deixava  passar aquilo. Nunca. Jamais.
 
 
Muito bem desmontada a demagogia que grassa em alguma(?) imprensa deste país !
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