quinta-feira, 17 de novembro de 2011

A propósito da reportagem da Sábado

A revista Sábado foi para a rua fazer um vídeo com aquilo que a revista Sábado considera serem perguntas sobre cultura geral. E escolheu jovens universitários, para que no dia seguinte o país pudesse ficar chocado e fazer uso dos chavões do costume, que estavam a ganhar mofo nas gavetas com a conversa da crise: que tanta educação e depois não sabem nada, que é só gastar dinheiro, que antes isto não era assim, que escândalo, que burros, andamos nós a gastar dinheiro nisto.

Não quero gastar muito latim nisto, porque não merece mesmo, mas ainda assim quero dizer umas coisinhas:

1. Já vi vídeos deste tipo feitos nos mais diferentes países, com os mais variados níveis educacionais. A minha experiência diz que, em qualquer país, é fácil encontrar pessoas pouco cultas, ainda mais se estivermos dispostos a escolhê-las pelo aspeto e ainda muito mais se o vídeo não tiver de ser representativo da amostra. Em bastando escolher os mais "engraçados", aquilo faz-se em duas ou três horas. À atividade de se mostrar partes da realidade selecionadas com o propósito de demonstrar uma teoria anteriormente postulada pelo autor não se dá o nome de jornalismo - convencionou-se o uso do termo "propaganda".

2. Portugal é um país em que o Exame Nacional de Sociologia é um teste de cruzinhas. Isto são só exames, não são as aulas, é verdade, mas se tudo o que o Estado me quer ensinar sobre Sociologia dá para um teste de cruzinhas, é difícil espantarmo-nos se dois anos depois eu confundir o Max Weber com a Max Mara e o Karl Marx com os Marx Brothers.
O mesmo acontece com a arte, que só aparece na retaguarda nas aulas de História. De que me serve saber quem pintou a Capela Sistina se não sei o que terá ela de extraordinário? Se a apreciação da arte não vinha num teste de cruzinhas, agora querem o quê?

3. Outro dia, o Ministro da Educação disse que estava na altura de nos concentrarmos nas disciplinas essenciais.

4. Uma das coisas mais extraordinárias dos últimos anos em Portugal é o facto de terem chegado às universidades, com enorme esforços dos pais, jovens que foram os primeiros da sua família a acabar o secundário, jovens que foram os primeiros da sua terra a frequentar uma universidade. Curiosamente, as conversas ao jantar lá em casa não versavam sobre a Capela Sistina, os diários de referência não eram uma companhia habitual e as tardes passadas no Centro Cultural de Belém não eram o programa de domingo mais frequente.

5. Comparados com a anterior geração de universitários, estes jovens sabem menos - é perfeitamente natural. As elites continuam lá, não se apoquentem que não foram a lado nenhum. Mas já não são a maioria.

6. Outro dia, questionado sobre os direitos dos trabalhadores na Assembleia da República, Álvaro Santos Pereira respondeu "Eu sei o que se passou em Cuba e na União Soviética". Passou no teste de cruzinhas, decerto, mas com debate político deste nível, alguém se espanta com os jovens que dizem que não gostam de política? É isto a política, estes debates superficiais recheados de cretinices e indiretas? Então eu também não gosto: deixa-me mal disposta e insulta-me a inteligência.

7. Repito-me, mas raramente
uma única geração foi tão ridicularizada de cada vez que tentou tomar uma posição política. Que ainda existam entre eles jovens que se interessem por política, é um verdadeiro prodígio.

8. Também outro dia, alguém veio sugerir menos informação no serviço público de televisão. Trata-se de alguém que frisou que uma coisa "não tinha nada haver" com outra e que tinha grandes dificuldades em perceber a distinção entre um órgão de comunicação ser do Estado ou "do Governo" (tenho de encontrar estas declarações).

9. As perguntas escolhidas são muito curiosas e muito típicas de um país onde é considerado gravíssimo não ter lido o último Houellebecq mas perfeitamente normal desconhecer o conteúdo da(s) teoria(s) da relatividade, a localização das placas tectónicas ou falar do "
símbolo químico da água". Somos muito humanistas, é o que é.

10. Eu também tive de ir ver quem tinha sido O Padrinho. Vi o filme, mas não me lembrava. Vou ali sentar-me no cantinho a pensar porque é que isso é grave.

Honestamente, sem fazer um grande esforço, eu não tenho vergonha do país que vi naquele vídeo.
Não me preocupam as comparações com as gerações anteriores - basta-me ver a evolução da taxa de analfabetismo para dizer sem medo que há 20 anos o conhecimento dos portugueses sobre a Capela Sistina não andaria muito melhor. Tenho muito orgulho nos saltos que a Educação em Portugal deu nos últimos anos, especialmente na sua democratização e no seu alargamento. Tenho vergonha de quem se aproveita das fraquezas de uns quantos para fazer pouco de uma geração inteira. Estou cansada do discurso do ódio. Preocupa-me muito que o discurso na Assembleia da República não seja fundamentalmente distinto do que o vídeo mostra. E repugna-me que uma organização jornalística produza um vídeo tão demagógico. Mas não tenho vergonha deste país.

Update: Entretanto fui ler o texto que vinha com o vídeo, que ultrapassa o vídeo no ódio, na arrogância, na sobranceria e na falta de nível. Fiquei a saber de onde vinha a agressividade do jornalista, é que ele não tinha frequentado um curso universitário. Ou, se tinha, não foi jornalismo. Eu tive jornalismo na faculdade e nenhum dos meus professores deixava passar aquilo. Nunca. Jamais.

1 comentário:

  1. Muito bem desmontada a demagogia que grassa em alguma(?) imprensa deste país !

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