sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Das memórias

Ultimamente o tema da maternidade tem vindo à baila em muitos blogues. Eu não tenho nada de espectacular a acrescentar. Identifico-me mais com algumas mães do que outras, concordo com algumas, parcialmente com outras. Há teorias que nunca colocarei em prática. Não há fórmula perfeita para educar um filho mais que não seja porque somos todos diferentes: mães, pais e filhos. E se metermos na equação avós, padrastos, irmãos etc. ainda mais complexa é a situação.

Li este texto no Eu, ele, a Maria e o Miguel e identifiquei-me de tal maneira que fiquei com um ligeiro nó na garganta: porque sou mãe e tenho medo, porque sou filha e não esqueci.


a minha mãe recortava bonecas em cartolinas e desenhava-lhes roupas para nós brincarmos. ela vendia doces para fora: na nossa cozinha uma bancada de mármore muito grande estava sempre coberta de brigadeiros e doces de ovo com caramelo e uma noz em cima. a nossa casa cheirava a chocolate e ela deixava-nos sempre rapar a tigela. no dia em que a minha irmã mais nova nasceu ela passou na minha escola para me explicar o que ia acontecer. eu tinha 6 anos e ela não queria ir sem me dizer adeus. no gira-discos ela ouvia o bolero de ravel e segurava as nossas mãos pequeninas e fazia-nos rodopiar. preparava-nos festas de anos e os bolos eram caras de palhaços com bocas feitas de pintarolas e cabelos de fios de ovos. ela nunca me deu uma palmada. ela levava para casa cães que encontrava na rua e tomava conta deles até lhes encontrar um dono. ela enchia sacos de comida e levava-me pela mão até às barracas nas traseiras da nossa casa. chamava-me verinha. ainda chama.o meu pai viajava muito mas sempre que voltava trazia-nos chocolates muito grandes que comprava no aeroporto. um dia eu fugi da creche e fui ter com ele à fábrica onde trabalhava: ele nunca mais me levou para lá. lembro-me de estar na cama com ele e a minha irmã mais velha: ele contava-nos a história da branca de neve com vozes engraçadas. no dia em que a minha mãe foi para a maternidade ele fez-nos muitos ovos estrelados para o almoço. ele dava-nos banho e embrulhava-nos nas toalhas com um abraço. na praia levava-me ao colo até à toalha para eu não me sujar com areia. ele nunca me deu uma palmada. ele fazia puzzles comigo no chão da sala. chamava-me verita. ainda chama.é engraçado como a nossa mente funciona: estas são as coisas de que eu me lembro. eu era pequenina: não me lembro de muito. nesses dias que eu não lembro eles faziam o melhor que conseguiam. e davam-me colo, limpavam-me as feridas, secavam-me as lágrimas, faziam-me cócegas. e eu que não me lembro de muito. [naquele dia eu estava com a minha irmã a fazer desenhos. não sei que idade tinha. talvez 5 porque ainda era só eu e ela. o meu pai entrou no nosso quarto com outro senhor. juntos foram ver a clarabóia que ficava lá no alto, onde nenhuma de nós chegava. o senhor ia arranjá-la. aproximei-me deles e dei ao meu pai o desenho que tinha acabado de fazer. era para ele. ele agradeceu-me e continuou a explicar ao senhor o que era preciso fazer. sentei-me a fazer outro desenho. quando a clarabóia se abriu caíu areia para o chão, estava suja. naquele momento a olhar para eles vi: o meu pai pediu desculpa ao senhor, apertou o desenho que lhe dei com as mãos e usou-o para limpar o vidro. ele fez tudo muito depressa, sem pensar. eu nunca o esqueci.][naquela noite eu estava sentada no chão da sala. estava escuro. tinha 6 anos. tinham passado horas desde que a minha irmã mais nova tinha começado a chorar. sentada no chão da sala eu olhava para a minha mãe: de robe comprido e um bebé muito pequenino nos braços. ela era a melhor mãe que eu podia ter: ela estava sempre lá. e nós éramos agora 3 filhas, uma casa e um casamento que nunca foi perfeito. na escuridão eu ouvia o choro da minha irmã, o choro da minha mãe que se balançava para trás e para a frente. ela estava sozinha e cansada. e zangada, ela disse: cala-te, cala-te senão atiro-te da janela. ela era a melhor mãe que eu podia ter: calma e carinhosa. e depois ela gritou. e eu nunca o esqueci.]todos os dias tento dar o meu melhor: dou-lhes colo, limpo-lhes as feridas, seco-lhes as lágrimas, faço-lhes cócegas. esforço-me todos os dias. abraço-os e espero que eles me larguem primeiro: abraço-os o tempo que eles precisam. será que eles se vão lembrar disso? e depois desligo-me e faço coisas e digo coisas: coisas sem pensar: terei feito alguma coisa que eles não vão esquecer? eu nunca o esqueci. prometi a mim mesma fazer diferente. e um dia deitei o miguel muito pequenino na minha cama: ele chorava. segurei-o nos meus braços durante horas enquanto ele chorava e depois deitei-o na minha cama: tão pequenino. mas a limpar as minhas lágrimas gritei bem alto: cala-te. olhei para trás e ela ali: a maria. a pequena maria a olhar para mim. e eu que estava sozinha e cansada.ela faz-me desenhos e recorta pedaços de revista que me entrega embrulhados numa folha: é para ti. guardo-os a todos. pedaços de panfletos de supermercado que guardo durante dias: se ela me perguntar por eles mostro-lhe. ela nunca pergunta. depois deito-os no lixo, mas abro bem o saco e empurro-os lá para o fundo para ela não os ver. sinto-me sempre mal quando o faço. depois esqueço. e todas estas coisas que eu faço fazem-me pensar em nós: seres humanos. como pequenas coisas sem importância nos marcam e definem. esse é o meu maior medo: falhar. esquecer-me que eles me estão sempre a observar e falhar: mesmo ali, naquela pequena coisa. medo de ser humana: vou falhar muitas vezes. os meus pais foram os melhores pais que eu podia ter, deram-me amor, conforto, segurança. e depois um dia distrairam-se. e eu nunca o esqueci.

4 comentários:

  1. ultimamente comecei a lidar com algumas crianças que estão em instituições e que quer por negligência quer por maus tratos foram tiradas aos pais. aquelas crianças estão cheias de histórias que pais que falharam, mas falhar a sério. acho que às vezes não medimos bem a nossa própria exigência. entre não ser perfeito e falhar vai uma distância.

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  2. O problema é que até uma certa idade não há discernimento das nossas próprias exigências. E mesmo que mais tarde tenhamos maturidade e experiência para perceber que aquela situação não tinha grande importância, fica como que gravada nas paredes da nossa memória, não se esquece. Não sei até que ponto não nos molda enquanto pessoas (por pouco impacto que tenha) ou explica certos comportamentos. Falo por mim, claro. :)

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    1. claro que molda, tudo molda e a vida é mesmo assim, não é idílica. o que queria dizer é que me parece demasiado exigente para um pai/mãe se sentir culpado porque um dia está mal humorado quando chega a casa e berra com o filho e que efeito é que isso vai ter nele quando isso não é falhar, é humano (na minha modesta opinião de pessoa sem filhos).

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